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19 de Abril de 2024

Juíza rejeita denúncia por uso de drogas

Em recente decisão, já transitada em julgado, a magistrada rejeitou denúncia que imputava a conduta de possuir droga para consumo próprio, sob o argumento de atipicidade da conduta

há 9 anos

Apesar do processo ser público e de ter transcrito a decisão na íntegra, apenas substituí o nome da parte por um fictício, com o objetivo de não expor a sua imagem.


D E C I S Ã O

Vistos etc.

O Órgão Ministerial ofereceu Denúncia em face de TÍCIO, já qualificado nos autos, imputando-lhe a prática do crime tipificado no artigo 28, caput, da Lei nº 11.343/2006.

Colhe-se da peça acusatória, às fls. 02, que o acusado, em 21/11/2013, foi abordado por policiais, os quais encontraram com o réu 03 (três) pequenas “buchas” da substância ilícita vulgarmente conhecida como “maconha”, todas destinadas para seu próprio consumo.

Relatados, decido:

Preambularmente cumpre registrar o posicionamento a ser firmado por este Juízo diante da situação fática ora vivenciada pelo acusado.

Em que pese o estágio inicial que se encontra a presente ação penal, o que aqui se discute é a reprovabilidade da conduta perpetrada pelo réu e a (des) necessidade de punição pelas vias do Direito Penal.

Neste sentido, importante trazer à baila o entendimento exposto pela então Juíza de Direito Maria Lúcia Karan que, ainda na vigência da Lei nº 6368/76, absolveu a ora ré pela prática do crime previsto no artigo 16 da referida lei, flagrada com pequena quantidade de maconha e cocaína para uso próprio, sob argumento da "falta de tipicidade penal”.

No referido decisum, a ilustre magistrada assim asseverou que:

"É comum ouvir afirmações de que a impunidade da posse de drogas para uso pessoal incentivaria a disseminação de tais substâncias. Entretanto, uma análise mais racional revela que tal afirmativa não parte de dados concretos, sendo mera suposição, suposição que também seria possível fazer num sentido oposto, pois não é razoável pensar que a ameaça de punição pode, não só ser inócua no sentido de evitar o consumo, como até funcionar como uma atração a mais, notadamente entre os jovens e adolescentes, setor onde o problema é especialmente preocupante. Também não há dados concretos que demonstrem que a punição do consumidor tenha alguma consequência relevante no combate ao tráfico. A simples observação dos processos que tramitam na Justiça Criminal permite afirmar que é raríssimo encontrar casos em que a prisão do consumidor leva à identificação do fornecedor. Se o consumidor pode vir a ser um [...] traficante, deverá ser punido no momento que assim se tornar, pois aí sim estará deixando a esfera individual para atingir a bens jurídicos alheios, devendo a punição alcançar qualquer conduta que encerre a destinação da droga a terceiros, pouco importando se o fornecimento se dá a título oneroso ou gratuito, em grande ou pequena quantidade."

Já sob a vigência da atual Lei nº 11.343/06, a 6ª Câmara Criminal do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP, Sexta Câmara Criminal, Apelação Criminal nº 993.07.126537-3, Rel. José Henrique Torres, j. 31.03.2008), por sua vez, retomou o debate para fins de declarar a inconstitucionalidade do artigo 28 da referida Lei, sob o argumento de que

“não há tipificação de conduta hábil a produzir lesão que invada os limites da alteridade, afronta os princípios da igualdade, da inviolabilidade da intimidade e da vida privada e do respeito à diferença, corolário do princípio da dignidade, albergados pela Constituição Federal e por tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil”.

Tal posicionamento tomou projeção nacional, de tal modo que já é possível verificar a sua presença nas sentenças dos magistrados de primeiro grau, a exemplo do Juiz Rubens Casara, da 43ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, que absolveu sumariamente o réu pela prática do crime previsto no artigo 28 da lei nº 11.343/06, sob o fundamento de que o fato narrado evidentemente não constitui crime:

"Por força do princípio da ofensividade (nullum crimen sine iniuria), não existe crime sem ofensa ao bem jurídico em nome do qual a norma penal foi criada. No caso em exame, a conduta de P. Não colocou em risco real e concreto o bem jurídico - saúde pública - que se afirma protegido pela norma penal incriminadora. De igual sorte, não se pode reconhecer a existência de crime sem que o resultado da conduta do agente se mostre capaz de afetar terceiras pessoas ou interesses de terceiros. Note-se que a conduta do réu toca apenas bens jurídicos individuais."2 Por fim, como consequência deste debate, a arguição da inconstitucionalidade aportou no STF, que lhe deu status de"Repercussão Geral". Sendo assim, portanto, a discussão atual acerca da inconstitucionalidade do artigo 28, da Lei nº 11.343/06 afeta o Supremo Tribunal Federal, que não deve demorar na apreciação do caso”.¹

Como visto no teor do julgado acima transcrito, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu e existência de “Repercussão Geral” no caso da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06:

"No caso, a controvérsia constitucional cinge-se a determinar se o preceito constitucional invocado autoriza o legislador infraconstitucional a tipificar penalmente o uso de drogas para consumo pessoal. Trata-se de discussão que alcança, certamente, grande número de interessados, sendo necessária a manifestação desta Corte para a pacificação da matéria. Portanto, revela-se tema com manifesta relevância social e jurídica, que ultrapassa os interesses subjetivos da causa. Nesse sentido, entendo configurada a repercussão geral da matéria Constitucional."

Ademais, a Primeira Turma do Pretório Excelso, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli, aplicou, de forma pioneira, o princípio da insignificância a caso específico de porte de drogas, esclarecendo que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando “estritamente necessários à própria proteção das pessoas”, levando-se em consideração, para tanto, que no caso houve porte de ínfima quantidade de droga, o que resultou na determinação do trancamento do procedimento penal por ausência de tipicidade material da conduta²:

“a aplicação do princípio da insignificância, de modo a tornar a conduta atípica, exige que sejam preenchidos requisitos tais como a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e relativa inexpressividade da lesão jurídica”.

Por fim, tal posicionamento vem a se consolidar com a proposta da comissão de juristas responsáveis pelo Anteprojeto do Novo Código Penal de descriminalizar o uso de drogas, cabendo ao Poder Executivo regulamentar a quantidade de substância que uma pessoa poderá portar e manter sem que se considere crime.

Outrossim, não se ignora a possibilidade de diferente posicionamento nos Tribunais pátrios, mormente por não estar pacificada a questão nos Tribunais Superiores. Todavia, entendo ser desnecessário aprofundar-me nas razões do meu convencimento acerca da atipicidade da conduta, eis que os entendimentos supra transcritos refletem o meu decisum.

Tendo em vista a atipicidade da conduta perpetrada pelo réu, concluo pela falta de justa causa para o exercício da ação penal, razão pela qual REJEITO A DENÚNCIA, com fulcro no artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal.

Intimem-se. Preclusos prazos recursais, dê-se baixa e ARQUIVE-SE.


1 - Juízo da 43ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – Processo nº 0074975-39.2010.8.19.0001– Juiz Rubens Roberto Rebello Casara. Sentença Proferida em 31 de janeiro de 2012.

2 - STF, 1ª Turma., HC 110.475/SC, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 14.02.2012


Juza rejeita denncia por uso de drogas


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141 Comentários

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A criminalização por si só é um cerceamento de escolhas civis inerentes ao próprio individuo. Quem é contra a legalização ou até mesmo contra a descriminalização é a favor do crime, proibir o uso de uma substância não fara que ela deixe de ser consumida, além é claro de afetar a liberdade individual de escolha do individuo.
Torço que com o advento do novo CP ou alteração da matéria já existente, o legislador pense de fato na resolução desse problema crônico e não apenas em medidas para agradar setores conservadores da sociedade.
A questão deve ser tratada de forma imparcial e coerente, quando esbarramos em questões como legalização das drogas, do aborto, legislação para o casamento homo afetivo devemos SEMPRE refletir: eu estou tentando interferir na escolha individual civil de alguém ? Se a resposta for sim, você esta no caminho errado. Partindo dessa premissa qualquer pessoa poderia decidir se você deve casar ou ser solteiro, consumir álcool ou não consumir, ter filhos ou não ter. Esse tipo de escolha, cabe inteiramente e somente ao individuo não admitindo "terceiros" interessados em controlar sua vida. continuar lendo

A questão principal, ao meu ver, está relacionada a necessidade de mudarmos a estratégia de "combate", pq não é possível continuarmos com a guerra que vivemos. continuar lendo

Em qual lugar do mundo ouve diminuição do consumo com a descriminalização? continuar lendo

Nem sei, Guilherme, se a questão deve ser vista somente pelo lado da diminuição do consumo.
Consome quem quer, seja ela lícita ou ilícita. continuar lendo

Fernando, seu comentário está perfeito. Há que se perguntar a quem interessa este pseudo combate ao tráfico nos moldes existentes atualmente. Em qualquer lugar desse nosso imenso país encontram-se drogas para comprar com a maior facilidade. Basta perguntar a qualquer pessoa na rua. Só se prende traficantes que não concordam em pagar pelo direito de manter seu negócio. E os que pagam, mas são presos acidentalmente, em pouquíssimo tempo estão de volta aos negócios. A humanidade ainda se envergonhará das punições infligidas a quem usa ou comercializa drogas assim como a igreja católica se envergonha da “santa inquisição”. Vivemos um festival de punições por nada, que atingem apenas e tão somente os mais fracos. Nossa sociedade se especializou na arte de se intrometer na vida privada e na individualidade do cidadão. continuar lendo

A questão da liberdade do indivíduo envolve a liberdade de outros, pois vivemos em sociedade. Se o senhor tiver um parente ou amigo que foi atropelado por alguém que fez a escolha "pró" droga, talvez possa pensar em limitações quanto as escolhas que defende. Liberdade absoluta não existe. A nossa termina onde começa a de nosso semelhante. Além do mais, uso de drogas não é algo como ter filhos, que depende de outra pessoas, no seu caso, ou se relacionar com pessoa do mesmo sexo. Isto é função natural que nasce conosco, portanto a comparação não se aplica. Usar drogas é para quem acredita que o mundo fictício é melhor do que o real e precisa se refugiar nele. E incluo o uso de álcool e cigarros, o que é a mesma coisa. A diferença é que as ultimas "ainda" são licitas. A fuga vem de insatisfação consigo mesmo e não é questão de liberdade, como já explanado acima. Quando você trabalha no que ama, pois todo mundo precisa trabalhar, e tem amor a isto, o restante você "tira de letra". Ademais, a tríplice falta de educação que o nosso povo recebe dos responsáveis pela mesma, joga o nosso jovem a acreditar em fantasias. continuar lendo

Basta o governo taxar com trocentos porcento de imposto a maconha, que ele libera rapidinho, pois para os políticos o que importa é o dinheiro no bolso e o povo que se lasque. É assim aqui desde 1500. continuar lendo

Sergio Schiavom, vc já está entrando em uma outra questão. Pessoas que falam ou digitam no celular enquanto dirigem tbm deveriam ser presas? continuar lendo

Excelente seu comentário! compartilho da mesma visão continuar lendo

Guilherme Borges, em Portugal houve considerável diminuição do consumo com a descriminalização. continuar lendo

Penso que não deve ser levado por esse lado, pois a criminalização não é pelo uso, mas sim por portar a droga para uso. Pois quando o indivíduo porta a droga há um risco potencial de cair em circulação e dessa maneira, para proteger a saúde pública, é que tal posse de drogas enquadra-se em crime e deve ser combatido. continuar lendo

Gesiel, a Lei estabelece o porte para consumo e o para venda. Duas situações diferentes, com tratamentos diferentes. continuar lendo

Um alerta sobre um dos comentários que li aqui dizendo que a lei atual ja permitiria o porte para consumo e venda, o que não é verdade. Calma aí pessoal. Ambas as condutas estão previstas na lei penal pertinente, a 11.343/06. E ambas são previstas como práticas criminosas. O fato de o porte de drogas para consumo não ter previsão de cumprimento de pena de reclusão ou detenção não quer dizer que não seja uma prática criminosa. É crime sim. Vejam o art. 28 e parágrafos da dita lei.

E a propósito do usuário, penso que ele, antes de um criminoso, é um doente e merece ser tratado como tal. Se foi em busca de drogas, alguma ftustração ou carência ele tem e isso deve ser tratado em consultório psiquiátrico e com sessões de psicoterapia. Esse é só mais um motivo pelo qual eu não consigo enxergar fundamento para se legalizar substâncias psicoativas, para fins recreativos.

E sobre a sentença título do artigo, vergonhoso que tenha transitado em julgado. Na minha opinião a juíza errou feio. Usou o controle difuso da constitucionalidade pra permitir que um doente continue alimentando sua doença, correndo e colocando em risco sua vida e a paz dos seus familiares e cidadãos próximos a ele. Esse cidadão merecia a advertência legal e um tratamento de desintoxicação, somado ao atendimento psiquiátrico e psicológico, pra que a causa do seu início no uso de drogas fosse tratadoa e solucianada. continuar lendo

E se a droga consumida for uma alteradora da consciência e da vontade, como o caso do crack, cocaína, heroína, LSD etc? Já testemunhei dezenas de vezes em minha vida pessoas agredirem violentamente outras porque estavam sob efeito de cocaína e entraram em delírio persecutório. Tenho um vizinho viciado em cocaína, que já espancou violentamente familiares por estar sob efeito de drogas, quase matando a própria irmã, que só sobreviveu graças à rápida chegada da polícia. Há liberdade individual para se usar substâncias que podem fazer o usuário colocar em risco a vida alheia, como consequência natural e previsível do uso destas? Uma pessoa sob efeito de drogas pode dirigir um carro? Pode realizar em outrem uma cirurgia? Pode trabalhar operando máquinas? São questões importantes que mostram que o uso da droga por alguém pode, sim, gerar consequências danosas para terceiros, mostrando que o aspecto da liberdade de escolha individual não esgota a questão. continuar lendo

Nullum crimen siene iniuria, perfeito!
Essa insistente criminalização retrógrada e expansionismo penal injustificado tem que acabar!
Direito penal simbólico enfraquece o ordenamento e satura os limites de atuação do Estado na esfera privada.
Parabéns magistrada! continuar lendo

Apoio a descriminalização das drogas! continuar lendo

Gostei desta matéria e gostaria que fosse colocado em pauta na política e discutida entre todos os setores da sociedade.somente para alertar, mesmo proibida, aumentou consideravelmente a população carcerária e jamais teve redução de danos.Apoio esta iniciativa pelo viés econômico e da segurança pública que investe bilhões de reais sem uma contrapartida eficaz. continuar lendo

Até os americanos, super conservadores, cansaram de gastar bilhões de dólares combatendo as drogas e estão legalizando a maconha. Lembraram do “sucesso” da lei seca, há um documentário sobre velhos alambiques nos EUA e um dos donos, bem velhinho, diz ter saudades da lei seca porque dava muito mais lucro.

Pior é ter gente pedindo mais leis rígidas como se isso fosse acabar com as drogas. É melhor se informarem porque o homem se droga desde os tempos das cavernas e até os inocentes índios se drogam com plantas e animais.

Há inclusive documentários sobre animais como felinos que se drogam, vamos botar os índios e esses animais na prisão também? Se somos seres racionais vamos usar o cérebro e não a emoção e o achismo. continuar lendo

O Juiz Menna Barreto, do Rio de Janeiro, já fazia isso quando ainda vigorava o artigo 281, do Código Penal Brasileiro. Aquele sim, estava avançado no tempo. continuar lendo